terça-feira, 7 de abril de 2020

“Heróis do Mar” - Os Crepes Queimados e a mitologia popular do diz que disse que aconteceu.

“Heróis do Mar” -  os Crepes Queimados e a mitologia popular do diz que disse que aconteceu.
É curioso que apenas no centro de Portugal, em Coimbra, exista uma sobremesa que tanto vingou: o Crepe Queimado. E as suas variações são as mais diversas: há restaurantes que acrescentaram laranja ao creme, há quem tenha acrescentado limão, há quem não queime o chantilly, há quem apenas coloque amêndoas na cobertura de chantilly e ainda há quem nada lhe tenha acrescentado. Daqui a muitos anos, quando ninguém cá estiver que conte a História do Crepe Queimado, dir-se-á que é uma sobremesa tradicional da zona de Coimbra, que diz que disse que foi alguém que o inventou, mas que não se sabe quem porque era uma sobremesa que tantos restaurantes da zona de Coimbra faziam que diz que disse que já não se sabe ao certo quem inventou. Mas a História não é bem essa.
Tudo começa antes de 1980, quando uma Chef então desconhecida criava na sua cozinha, numa aldeia perto de Coimbra doces iguarias que depois eram vendidas a diversos restaurantes da cidade. Isto numa época ida em que os doces eram um apêndice no menu e os cozinheiros não os dominavam pois os doces não eram nessa época a “cereja no topo do bolo” de uma refeição. É uma História que se inicia muito antes do glamour de que hoje goza a profissão de cozinheiro e em que se esperava do cozinheiro no máximo uma quarta classe ignorante, acompanhada apenas por uma queda para a cozinha. A clássica estória da cozinheira da aldeia que sabia cozinhar muito bem mas privada de cultura. Nessa época diversos restaurantes recorriam à compra de sobremesas a terceiros. E de facto ainda hoje isso se sucede, quando o restaurante compra a sobremesa já feita industrialmente e à qual acrescenta uma bola de gelado e um caramelo industrial e se tenta fazer passar por sobremesa caseira com metade do trabalho e o dobro do lucro. Mas antigamente a situação era pior (ou diferente), porque não existia esta indústria a criar as sobremesas para os restaurantes. E assim essa Chef, amante e estudiosa da culinária francesa, que descobriu as madalenas através de Proust e não o inverso, encontrou o seu nicho de mercado: criava essas doces iguarias, tais como os seus clássicos: a torta de noz, ou a torta de amêndoa que foram durante diversos anos as sobremesas de diversos restaurantes de Coimbra. Um desses restaurantes era o Restaurante Sereia do Mondego, que mais tarde essa mesmo Chef veio a adquirir.
Com essa nova posição de proprietária e Chef do Sereia do Mondego tornava-se claro que teria de deixar de vender sobremesas para outros restaurantes. Assim, criou o seu desafio pessoal de inventar novas sobremesas para substituir no seu cardápio os seus próprios clássicos estabelecidos e que já eram sucessos de pleno direito. Tudo por uma questão de originalidade e para que as sobremesas do seu restaurante, as suas sobremesas de assinatura, fossem diferentes de todos os outros restaurantes de Coimbra.
 E assim, num ido e distante almoço de Domingo, o único dia em que o Restaurante Sereia não servia refeições e a sua família podia almoçar em casa, esta Chef apresentou no final da refeição duas opções de inspiração na culinária Francesa. Naturalmente, na sua perseguição da originalidade, com a sua típica transformação e reinvenção: uma delas tratava-se de uma interpretação do  Crepe Suzette ou  flambée, que foi nesse dia flamejado com um rum venezuelano e o outro, o inovador Crepe Queimado. Este Crepe Queimado fora criado a partir do crepe francês, mas aproximando-o à tradição portuguesa. Recheado com a incorporação da reinvenção de um creme conventual Português e finalizado com chantilly como cobertura, que  decidiu queimar como se fora um leite creme, ou um creme brûlée. Ambos os crepes eram deliciosos, mas a variante do crepe flambée envolvia toda a logística de flamejar um crepe diante do cliente, o que podia tornar-se perigoso se o empregado responsável por o fazer se distraísse por um instante que fosse durante esse processo. A decisão foi unânime e assim, tal como diversas outras receitas do Restaurante Sereia que ao longo dos anos foram testadas em almoços de Domingo, saiu vitorioso o Crepe Queimado. Inicialmente não foi o sucesso estrondoso que hoje é: durante alguns meses foi aparecendo na ementa num ou noutro dia da semana, quando esta era escrita diariamente numa antiga máquina de escrever azul e um erro ortográfico obrigava a refazer a ementa inteira. Apenas mais tarde este crepe viria a tornar-se na sobremesa da casa e na instituição que hoje ele é, em que não pode haver um dia sem que esse crepe figure no menu devido ao seu sucesso. Naturalmente que o crepe tem a sua origem em algum lado: somos todos a todo momento construções do passado – é dele que nos erguemos e tolos seremos se nele não nos conseguirmos encontrar.
Quando Louis Durand criou o famoso Paris-Brest em 1910 ele não inventou a massa choux, mas nesse momento criou com ela uma das sobremesas mais icónicas da pastelaria francesa -  e há o reconhecimento dessa autoria, da sua marca indelével na pastelaria francesa, que por muito que se afaste de si, seja na reinvenção do mestre pasteleiro Philippe Conticini dessa receita ou até na da nossa Chef, nunca se olvida o lugar de onde partiu: da imaginação de Louis Durand. De igual forma, quando em 1847 o Chef pasteleiro Chiboust criou o famoso Saint-Honoré, ele não inventou nem a massa Choux nem a massa folhada, mas tornou-se o autor incontestável deste marco da pastelaria francesa. Quando a Chef do Sereia o recria, não o faz tal como ele foi inicialmente divisado por Chiboust, ao aproximar esta receita da tradição conventual portuguesa. Mas em momento algum se afasta para o lado Chiboust e se chama à sua criação original outro nome que não Saint-Honoré.
Diz a Chef que a gastronomia é um processo fluído: um pouco como a tradição oral de contar histórias e estórias ou até como os blues, onde se torna difícil saber qual a verdadeira autoria de determinadas canções pois algumas derivam de raízes tradicionais que não se sabe bem onde têm a sua génese. Mas isso não é verdade nem para todas as estórias ou canções e nem para todas as receitas. Há aquelas das quais não pode, nem deve restar qualquer dúvida: O Paris-Brest foi inventado por Louis Durand, o Saint-Honoré por Chiboust e o Crepe Queimado foi inventado pela D. Encarnação, Chef do Restaurante Sereia do Mondego.
Senão, então retiremos as aspas do início do título do texto. Chamemos-lhe antes “Heróis do Rio” e roubemos assim a Henrique Lopes de Mendonça a autoria d’A Portuguesa. E Já que aí estamos, então alteremos também o título do poema para a “Coimbrã”, que agora já em nossa vil posse se inicia da seguinte forma através da nossa original pena: “heróis do rio, célebre povo, nação poderosa”. Qual Henrique Mendonça? - Plágio é uma coisa feia…
Quando se plagia a obra de alguém, está-se a roubar ao seu criador não só o labor da criação, mas também se está a apropriar da sua História individual: das suas vivências, das suas experiências, dos seus estudos e paixões, que o conduziram enfim à criação final da sua arte.
Portanto quando se ouvir alguém dizer que diz que disse que o crepe queimado foi alguém que inventou, mas não se sabe bem por quem ou onde, ou que é um prato tradicional da cidade de  Coimbra, saberão agora assim qual a história que precede a sua criação e a sua autoria. E não o sei por ter ouvido de alguém que diz que disse. Sei-o porque o testemunhei sentado à mesa desse Domingo há mais de 30 anos, onde foi desvendada a sua criação e onde ouvi a sua explicação e o seu porquê -  porque esta é uma receita com História. Não surgiu do vazio.
Imagine-se por fim e por um instante o sentimento que percorre o espírito quando se ouve dizer que diz que disse que não se sabe bem quem os inventou e afinal quais são verdadeiramente os originais.
Ps – Este Domingo passado ao jantar, a Chef D. Encarnação preparou uma versão sua do Flan Parisien. Uma delícia: imagino que em breve o fará também para sobremesa do Restaurante Sereia do Mondego. E se o passado se repete, haverá no futuro ladrão que seja necessário importunar por roubo de propriedade intelectual?

João Parreirão
Restaurante Sereia do Mondego

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